Investigação sobre as Duplas Cômicas no Universo Popular: os personagens Ração e Vassoura do Auto da Nau Catarineta

  • Ana Carolina Paiva Universidade Federal de Uberlândia

Resumo

Ração e Vassoura, personagens marcados pela comicidade, estão inscritos no enredo do Auto da Nau Catarineta, espetáculo constituído de assuntos graves, trágicos e religiosos. Se valendo desta marca, estes personagens levam o público a desfrutar de situações hilariantes, causando-lhes alívio numa espécie de pausa cômica, em meio àquelas terríveis catástrofes marítimas.
Da Península Ibérica aportaram em nossa terra, via cordel, textos com fortes marcas da espetacularidade oral. Aqui chegaram imbuídos da estética barroca e seus elementos religiosos e moralizantes, impressos em espetáculos festivos, marcados por forte sensualidade e visualidade que destacavam da liturgia religiosa o espírito cômico.
É possível, pois, corroborar, que diversos personagens cômicos presentes nos espetáculos populares brasileiros descendem do antigo teatro popular e profano bem como das criações populares do Medievo, do Renascimento e da Commedia dell'Arte. Ração e Vassoura lançam mão de gestos bruscos, escatológicos e às vezes até imorais, típicos da festa de rua da Idade Média e do Renascimento. Esta espécie de “partitura gestual” também é reconhecida nos lazzi da Commedia dell'Arte.
Os dois personagens do auto são criados da embarcação, representantes do homem simples, subalterno, que é capaz de encontrar diversão nos pequenos prazeres da vida. Cantam, dançam e recitam versos, exercendo desta forma grande carisma perante o público.
As semelhanças que aproximam ao mesmo tempo os personagens das Farsas Atelanas da Antiguidade, dos espetáculos populares do Medievo e do Renascimento, da Commedia dell’Arte e do Auto da Nau Catarineta, se condensam nestas especificidades: são tipos fixos, sem psicologia, grande parte de sua movimentação cênica é feita de forma improvisada, os personagens falam diretamente à plateia ou quebrando o ilusionismo da cena por meio de situações cômicas dentro do enredo principal, o que implica numa linha épica de teatro. Porém sua característica comum mais marcante é a relação de dupla. Por exemplo: Maccus e Buccus, Arlequim e Briguella, Ração e Vassoura, Mateus e Birico.
Nesta fórmula cada elemento da dupla cômica, geralmente composta por um palhaço e seu ajudante, desempenha a sua função cênica num mecanismo que funciona muito bem quando o intuito é alcançar o riso. Esta fórmula foi batizada na França como "reencontre".
As semelhanças entre os dois personagens do nosso teatro popular e os personagens das heranças antigas, medieval, renascentista e da Commedia dell’Arte ainda são percebidas no gestual complexo e exagerado, repletos de números acrobáticos, e na fala satírica e debochada, muitas vezes grosseira e imoral.
Estes personagens constituem a dupla da inteligência, da improvisação chistosa,
desembaraçada, com prontidão verbal, que figuram a reação da sociedade ao sistema constituído. Por detrás da sábia abordagem estética do riso e do esquisito, o povo expressa suas revoltas contra os detentores do poder.
O Auto da Nau Catarineta conserva e perpetua com seus personagens Ração e Vassoura, a tradição dos grandes personagens cômicos universais, que por sua vez continuam um processo de recriação, haja visto que o espetáculo é apresentado todos os anos na cidade de Cabedelo na Paraíba.

Referências

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Publicado
2018-08-26
Seção
História das Artes e do Espetáculo