Guerreiras; processo de criação cênica a partir da f(r)icção entre artistas-pesquisadores e as mulheres de Tejucupapo-PE

  • Luciana de F. R. P. de Lyra Universidade Estadual de Campinas

Resumo

Esta pesquisa toma como eixo a interpretação de uma rede tecida por trânsitos e interações, interferências e implicações de minha experiência artística-etnográfica com as mulheres de Tejucupapo, distrito da zona da mata norte de Pernambuco entre os anos de 2006 e 2009. A investigação tem intuito de desvelar as camadas sobrepostas, superpostas e simultâneas desta experiência, desde meu acompanhamento e minha assessoria na realização do espetáculo A Batalha das Heroínas pela comunidade, às oficinas de teatro ministradas no lugarejo, passando pelo processo de criação e apresentações da performance Guerreiras, que, sob minha direção, teve como inspiração a vivência com as mulheres e o imaginário tejucupapense. O objetivo da pesquisa não é transcrever a vivência em campo como fato estanque, hermético e pontual, mas alargar o discurso na percepção do contexto dinâmico que a comunidade encontra-se, entrelaçando as ações simbólicas deste coletivo com a minha experiência pessoal e também simbólica, além da experiência da equipe de artistas por mim coordenada e envolvida na investigação, todos eminentes sujeitos da pesquisa.

O trabalho posiciona-se num lócus dialógico entre a prática artística-etnográfica e a teoria. Lócus, onde a vivência em campo, o processo de criação cênica e as apresentações do espetáculo Guerreiras entrecruzam-se com estudos da performance e do imaginário, descortinando a trama de ações objetivas e subjetivas intrínsecas à experiência, no sentido de compreender como esta pode desdobrar-se em um complexo de procedimentos pedagógicos para criação em artes cênicas. Para adensar este posicionamento investigativo, tomo emprestado dos estudos antropológicos, o conceito de descrição densa1 da experiência etnográfica, cunhado por Clifford Geertz, que se contrapõe a modos de avaliação sistemáticos das culturas, apontando uma abordagem simbólica e complexa, onde o pesquisador situa-se como também sujeito da investigação, empreendendo sua própria construção a partir de construções pré-existentes e interpretando a cultura como um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado2.

Além da abordagem simbólica da vivência em campo, defendida por Geertz, estabeleço ainda conversação com os estudos da antropologia da performance por Victor Turner, Richard Schecnner e Erving Goffman, no tocante às noções de experiência, comportamento restaurado, seqüência total da performance e  representação do eu na vida cotidiana. Dos estudos do imaginário, também firmo relação direta com o pensamento do filósofo Gaston Bachelard, os ensaios acerca da imaginação simbólica de Gilbert Durand, além do contato com as investigações de Danielle Rocha Pitta, uma das pioneiras em pesquisa sobre o imaginário no Brasil. Da Psicologia Profunda, trago à tona diálogos sobre a questão dos arquétipos e a mitologia pessoal, por Carl Gustav Jung, David Feinstein e Stanley Krippner. Do campo teatral, travo reflexões sobre a máscara/atuante a partir de Antonin Artaud, Jerzy Grotowski e Renato Cohen, retornando, concomitantemente, aos meus próprios estudos e às minhas práticas documentadas em monografia de especialização (UFRPE/2003) e na dissertação mestrado (UNICAMP/2005), além de autores afins nas áreas citadas. Faz-se mister mencionar que deste panorama de interlocuções teóricas, duas destacam-se especialmente na pesquisa, uma que se associa à  antropologia da performance, por Turner e a outra à antropologia do imaginário por Durand. Para Turner, a antropologia da performance toma parte de uma antropologia da experiência. Performance é uma expressão de experiência vivida e nesta estão inclusos momentos em que imagens e símbolos do passado se articulam ao presente. A mitodologia, termo cunhado por Durand propõe-se justamente a investigar o modo como surgem essas imagens e esses símbolos, e, baseando-se nas imagens e nos símbolos recorrentes, aponta os mitos regentes em cada período e cultura.

Tendo como foco teórico principal a fricção entre as abordagens antropológicas de Turner e Durand, a pesquisa tem como finalidade explorar o modo como as imagens das heroínas, advindas da batalha contra os holandeses no longínquo século XVII articulam-se ao presente, na experiência teatral dessas mulheres/performers da atual Tejucupapo, transformando-se em uma espécie de mito-guia, em máscara ritual de si. E mais, como a experiência comunitária pôde afetar a mim e, posteriormente, a equipe de artistas-pesquisadores por mim dirigida, suscitando um processo criativo em teatro.

Referências

BEZERRA, Cláudio(org). Tejucupapo: história, teatro, cinema. Recife. Editora Bagaço, 2004.

COHEN, Renato. Performance como Linguagem – Criação de um espaço-tempo de experimentação. São Paulo, Editora Perspectiva, 1989.

DAWSEY, John Cowart. Victor Turner e a antropologia da experiência. São Paulo. Cadernos de Campo, 13:110-121, 2005.

DURAND, Gilbert. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa, Editorial Presença,1990.

FREIRE, Maria Angélica Almeida de Miranda. Associação Heroínas de Tejucupapo. 2000,

Monografia (Especialização em Associativismo e Cooperativismo), Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2000.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC Editora, 1989.

LYRA, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. Mito Rasgado; Performance e Cavalo Marinho na cena in processo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes), Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas-SP, 2005.

SCHECHNER, Richard. Performance studies – an introduction. London e New York. Routledge, 2002.

TURNER, Victor. The Antropology of Performance. New York. PAJ, 1988.

Publicado
2018-08-30